terça-feira, 20 de agosto de 2013

Cliff Sterret e a "girl strip" que não era


Como vimos nos posts anteriores, é falsa a atribuição a Cliff Sterret a criação do gênero girl strip, o que não muda em nada a importância e extrema qualidade de sua obra. De qualquer forma, qualquer atribuição de paternidade histórica deve ser vista com suspeita. As coisas nunca acontecem assim e, como garante meu amigo, o pensador Joaquim Toledo, a "criação histórica" é muito mais uma questão de patente legal do que de sopro divino.

Clifford Sterret nasceu em Minnesota, em 1883, filho de um farmacéutico de família escandinava. Como vários de seus contempoâneos, após um rápido curso de artes, foi tentar a sorte com o nascente e pujante jornalismo e cartunismo em Nova York. Após um começo, com dezoito anos, como assistente dos cartunistas do New York Herald, submete seu trabalho ao New York Telegram, onde é admitido com o cartum Ventriloquial Vag, de onde se seguiu Merry Ha-HaWhen a Man’s MarriedBefore and After e For This We Have Daughters, mas foi com Polly and Her Pals que o artista fez justa fama e fortuna.



O historiadores de quadrinhos, entretanto, costumam a atribuir à tira qualidades difíceis de serem aferidas por sua leitura desarmada. A protagonista é anunciada como uma representante da liberação da mulher no início do século, com seus penteados curtos e roupas atrevidas, além de sua discreta liberdade sexual. Mas se a compararmos com as divas diabólicas de Neil Brinkley, ou mesmo a personalidade exuberante de Mis Bountifull, Polly não passa de um perfil, uma estampa refilada contra os fundos psicodélicos e a vida familiar de dois velhos pais em luta contra um mundo que se modifica perante os seus olhos, um mundo no qual sua filha, Polly, é muito mais um dos sintomas do que a primcipal causa de sua angústia. 

A planaridade de Polly, que sequer chega a se configurar um personagem, também não deve ser usada para denegrir o maravilhoso trabalho de Sterret. Sim, Polly é plana, menos que um ideograma, algo como uma efígie de mulher. Um personagem genérico, enfim. Mas foi com esses personagens que a pintura de Manet livrou a pintura européia de sua centenária "profundidade" lacrimosa e piegas. 


Página dos primeiros anos de Polly, onde Sterret já mostra a peculiaridade de seu raciocínio e desenho, mas ainda longe da exuberância de sua maturidade mostrada nas imagens que seguem.





Também muito se falou do "modernismo" e do "cubismo" dos fundos de Sterret, julgando uma adesão eufórica à estética do mundo industrial, que coadunaria com sua suposta celebração do novo papel da mulher na sociedade. Esse critico também não consegue enxergar essa adesão, mas sim uma aquela resistência levantada por  Agambem em seu célebre texto. Essa "resistência ao contemporâneo", grosso modo, seria uma das formas mais fortes de inserção no próprio contemporâneo. Não uma adesão cega, mas uma relutância fruto da reflexão e do diálogo com as sombras resultantes da Luz da Razão e da História, quando lançadas sobre os fenômenos.

Assim, Sterret seria um art deco contra o art deco. Um "cubista" (em um sentido  é justamente muito fraco e diluído) contra o cubismo e, como não poderia deixar de ser, um entusiasta do novo papel da mulher pouquíssimo entusiasmado com o novo papel da mulher. E é justamente essa sua relutância e, principalmente desconfiança com relação ao mundo contemporâneo que cria a sua força, mas do que a retira. Essa desconfiança não deixa Sterret esbarrar nos ideologismos que corroeram boa parte da criação vanguardista italiana e brasileira, para dar dois exemplos próximos. Também o impede de cair no entusiasmo técnico e estilístico que deixa boa parte da produção cultural tão aborrecida e, ironicamente, pobre

Grandes artistas, se não os melhores, usaram essa relutância e resistência a vida contemporânea para produzir suas obras. Muitas vezes essa relutância se baseia em um arcaísmo, uma busca no passado de ferramentas para a leitura do presente. Giotto inspirou-se na escultura pisana das gerações anteriores para polemizar com a pintura cortesã, e assim, ajudar a inaugurar a pintura intelectual renascentista. Bruneleschi a mesma coisa com a engenharia romana, em contraste ao entusiasmo humanista de seus contemporâneos. E Crumb busca em Smith, Segar, Fisher e Herriman a forma de pensar a Cultura Psicodélica contra a Cultura Psicodélica. Como Sterret faz parte da primeira geração de uma nova arte, vai buscar em outros meios - a decoração Deco e a pintura cubista - os argumentos para discutir o seu meio. Mas os quadrinhos são usados aqui para corrigir a pintura cubista, assim como a decoração Deco. Afinal, no novo meio, sobra a espontaneidade popular e imediata que nenhuma dessas duas artes conseguem alcançar.



A outro vetor dessa equação é a fulgurante liberdade criativa de Sterret, uma selvageria que o faz recorrer ao já desacreditado cartum de pantomima (outro arcaísmo de resistência), mas que cria desfechos absolutamente impensáveis, como são impensáveis os roteiros. Não se trata dos malditos finais "surpreendentes" para as acadêmicas produções do cinema americano. O impensável que estamos falando, é resultado do Indisível (como Wittgenstein escreveu certa feita), e é provavelmente por nos mostrar esse mundo abaixo e anterior (no sentido filosófico) da linguagem é que Sterret não use palavras. De qualquer forma, alguns aspectos realmente o separam da maior parte de seus contemporâneos. O desfecho violento, a surra, bofetada, tijolada, pedrada e pancada que terminavam a maior parte das tiras, cartuns e páginas dominicais não aparecem em Sterret, assim como não são usadas em MacManus, seu contemporâneo que mais o inspirou, e, como sói acontecer com nosso artista, buscou contrastar.

Outro artista que inspirou Sterret é Herriman, com seus cenários cambiáveis, seu lirismo excêntrico e suas histórias sem roteiros ou acontecimentos, ou seja, sem uma trama tradicional. Diferentemente do cartunista de Krazy Kat, entretanto, Sterret usa cores planas em linhas duras e dinâmicas, evitando os achurados de sombras, aproximando-se mais de outro mestre dos primeiros cartuns, o alemão Feinninger. E Feinninger tinha real contato com o modernismo, principalmente o expressionismo alemão, cuja perseguição pela cretinice nazista o fez exilar-se nos Estados Unidos. E talvez seja mesmo de Feinninger que Sterret mais se aproxime, o que diz muito de sua originalidade, dada a distância entre os dois trabalhos.

Em outras palavras, Polly and Her Pals e seu criador, são obra de seu tempo e dialogam, alimentam-se, debatem e, principalmente, entram em atrito com ele, como fazem as grandes obras de arte. E é justamente por essa convivência cheia de atritos, ruídos e questionadora com sua contemporaneidade que trabalhos como Sterret mantém a juventude, fazendo com que Polly and her Pals e outras obras de Sterret sejam das mais atuais dos desbravadores dos quadrinhos.

Sterret também criou tiras para encimar as páginas dominicais, chamadas de "tops" e outros personagens, mantendo a unidade - intelectual e qualitativa - de sua obra, que marcha, com interrupções e mudanças de formatos e percursos, até junho de 1958, seis meses antes de sua morte.