quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Bud Fisher



Bud Fisher pode não ser o maior artista dos primórdios dos comics, mas existe a possibilidade de ser o mais importante. Afinal, foi ele que, ainda em 1907, estabeleceu o formato da tira horizontal, preto e branca e que, apesar da piada conclusiva no último quadro, sugeria uma continuidade. Também criou somente um enredo, baseado nos amigos Mutt e Jeff, com o qual se ocupou toda a vida, o que o aproxima muito mais do fabricante especializado do que do "artista criativo", seja lá o que isso queira dizer. Ou seja, Fisher não somente encontrou a galinha dos ovos de ouro das tiras diárias, mas literalmente a concebeu. E ainda registrou em seu próprio nome, tornando-se o primeiro cartunista a ser o milionário, dono do próprio produto. Aliás, poucos artistas souberam tão bem adaptar a sua obra ao capitalismo da sociedade industrial como Fisher, e provavelmente somente Walt Disney o tenha superado.
Mas vamos ao principio. 

Harry Conway "Bud" Fisher (1885 – 1954) nasceu em Chicago, Illinois. Cursou por três meses a Universidade de Chicago, que abandonou para fazer desenhos para o departamento de esportes do San Francisco Chronicle. Por essa época, a sessão de esportes era preenchida quase sempre por cartuns, devido a carência de recursos visuais para acompanhar a notícia, como câmeras de alta velocidade ou mesmo qualquer aparelho de reprodução mecânica. De qualquer forma, George Herriman começou como cartunista esportivo e homens como TAD ( Thomas Aloysius Dorgan ) eram verdadeiramente célebres por sua época. 
TAD, aliás, merece algumas palavras à parte, por ser tão típico desse momento de criatividade da imprensa do início do século passado, ainda sem a formatação e a padronização das décadas posteriores. Afinal, desde 1890,  quando trabalhou no San Francisco Bulletin, TAD acumulava as funções de cartunista e cronista esportivo, principalmente na área de Boxe, na qual era considerado um expert. TAD também se celebrizou pela criação de uma série de expressões que acabaram perenemente fazendo parte da gíria americana, como "hard-boiled",  "dumbbell", “drugstore cowboy”  e mesmo o slogan "Yes, we have no bananas", que se transformaria em música nos anos 40.  Seu cartum mais famoso era "Judge Rummy" depois chamado de "Silk Hat Harry's Divorce Suit", acompanhado quase sempre pelo cartum de uma imagem chamado "Indoor Sports", esses últimos para o New York Evening Journal, do onipresente William Randolph Hearst. Abaixo o exemplo de uma página de esportes da época, quase toda desenhada, e as duas tiras de TAD. Convém lembrar que uma delas é protagonizada por animaizinhos e que o próprio Herriman trabalhou junto a TAD, antes de criar suas próprias tiras com animais. 




Silk Hat Harry's Divorce Suit


Indoor Sports
Foi nesse ambiente do cartunismo esportivo que apareceu, ainda em 1903, o cartum "A. Piker Clerk", de Claire Briggs. O cartum tinha como assunto o próprio Piker Clerk , um apostador compulsivo na corrida de cavalos, a grande febre da primeira década americana (o próprio nome do personagem é um trocadilho com as diversas gírias para apostador, em inglês). A tira durou pouco, segundo a lenda infundada, por ter sido considerada "vulgar" por Hearst. Fábula difícil de engolir na biografia de um dos fundadores da imprensa sensacionalista. De qualquer forma, mesmo com o sucesso, Piker Clerk dura pouco, mas é evidente inspiração para a mais popular tira de jornal do começo do século, Mutt & Jeff. 



Duas Tiras com Piker Clerk, na anterior notamos algo da horizontalidade da tira habitual, que seria padronizada principalmente por Fisher.

Após trabalhar dois anos como desenhista do departamento de esportes do San Francisco Chronicle, Fisher publicou, em 1907, uma tira em um lugar e forma pouco usuais até então. Aproveitando o cabeçalho do jornal, ao invés do espaço deixado pelas colunas, Fisher lança o que seria conhecido depois como top strip, as tiras que encabeçam as histórias maiores - ou as ilustrações maiores - da página. A tira se chamava "A.Mutt" e é claramente inspirada na anterior, de Claire Briggs. O próprio formato - a tira horizontal - já havia sido usado antes, assim como o balão de diálogos por cartunistas antes de Opper e Dirks. O que esses artistas fizeram foi transformar em método e forma as intuições de seus antecessores. Em uma entrevista posterior, Fisher afirmaria que seu propósito, ao colocar a tira naquela posição e formato era "chamar a atenção".
Não se tem notícia de Briggs ter se irritado com a clara alusão ao seu personagem (até a roupa e o aspecto físico de Mutt e Piker coincidem . Isso em razão justamente da pouca propriedade que os criadores tinham sobre suas obras. Relação que Fisher também vai revolucionar, como veremos a seguir. Aqui duas tiras de "A.Mutt". 





Fisher publica a tira por um ano com Mutt. As piadas são variações das histórias de vagabundos dos cartuns da época, mais seu pé na realidade é uma novidade que faz sucesso: os cavalos em que Mutt aposta - e invariavelmente perde - eram reais, e tanto os leitores quanto o próprio Fisher tinham que esperar o dia seguinte para saber o resultado das apostas do personagem. Um dós-de-peito de realismo poucas vezes igualado pela "arte-vida" das vanguardas, neo-vanguardas e quetais. 
Em três semanas o sucesso da tira transfere Fisher do Chronicle para o San Francisco Examiner, pelo dobro do salário (algo como 45 dólares semanais, em uma época em que um trabalhador ganhava a média de 1 dolar/dia ). Um ano depois, Mutt conhece em um hospício um baixinho que dizia ser um antigo campeão de boxe, Jeff, e os dois recriariam, com êxito sem precedentes, as célebres duplas de vaudeville, que já habitavam os cartuns desde os tempos de Opper. 


Em 1909, Fisher é novamente transferido para outro jornal de Hearst, dessa vez o  New York American e se torna um sucesso nacional. Em 1915, ao término de seu contrato com Hearst, começa a trabalhar diretamente com a distribuidora, a Wheller Sindicate,  já que Fisher, em um gesto inédito, havia registrado os personagens em seu nome. Pela primeira vez um dono de jornal é fragorosamente derrotado em uma batalha judicial. Fisher agora, dono de sua própria criação, ganha uma média de 1000 dólares semanais por seis tiras, sem contar as dominicais. Em 1921 a Bell Syndicate começa a comercializar suas tiras, pagando um salário de 4.600 dólares semanais. E Fisher, a essa altura do campeonato, já tinha a sua própria produtora de filmes.  
Após a tentativa de um estúdio de New Jersey produzir uma série de filmes curtos sobre Mutt & Jeff em 1911, o próprio autor resolveu fundar a sua produtora, a Bud Fisher Film Corporation, criando 36 filmes curtos sobre a dupla até 1916. Após um incremento em sua companhia, o que incluía a total ausência de Fisher, substituído por um advogado que pagava as contas e desenhistas competentes que cuidavam da produção, chegou a produzir mais de duzentos e setenta filmes em 10 anos.
Em um período de 7 anos, Fisher passara de um cartunista bem pago para o mais rico e bem-sucedido cartunista de sua época, chegando a acumular mais de 250 mil dólares por ano com seus ingressos. Deixara de desenhar pessoalmente suas tiras em 1915, quando contratara Ed Mack do poderoso Hearst, que havia acabado de derrotar judicialmente. Ao que consta, Fisher contribuía cada vez menos, e, quando Ed Mack falece, em 1934, e Al Smith assume, Fisher não passa de uma assinatura imponente e um cheque enviado por um advogado no final do mês. Embora Fisher já não fizesse muito durante a produção de Mack, é com Smith que a tira assume seu aspecto de produto insípido, com um desenho absolutamente formal e piadas que, se já não eram de um brilhantismo intelectual notável, aproximam-se da nulidade. Um produto movido unicamente pela inércia do consumo, lido por mais 50 anos (até 1982!) porque foi anteriormente lido por trinta anos. Curiosamente, o próprio Smith só começa a assinar a tira com a morte de Fisher, em 1954.


tira de por Al Smith, assinada por ele. privilégio que demorou mais de trinta anos para conseguir.


Entre sua ascensão meteórica, nos anos 20, e sua morte, nos anos 50, Fisher ainda conseguiu acumular a dois casamentos com finais escandalosos, cavalos de corrida ganhadores de grandes prêmios, a fama de um bon vivant beberão e beligerante e inúmeras manchetes dos jornais do rancoroso Hearst, disposto a mostrar para a América o verdadeiro rosto do homem que havia conseguido os direitos sobre sua própria criação. Morreu enlouquecido e solitário em um enorme e decadente apartamento em Park Avenue, visitado pelos amigos cartunistas que havia esnobado durante o seu estrelato. 


Como obra de arte, Mutt & Jeff tem a força das grandes e anônimas obras populares. Esse anonimato estrutural, quase telúrico, foi perseguido por vários grandes artistas do século XX, de Duchamp a Warhol, sem falar em Dorival Caymmi, que queria fazer uma música que fosse tão simples e boa quanto "ciranda, cirandinha". Talvez o brasileiro seja o que tenha chegado mais perto, facilitado pelo meio, é claro, já que as chamadas fine arts são, mais do que as artes populares, calcadas na figura burguesa e capitalista do autor, como bem frisou Barthes. 

Seu desenho, ancorado na própria época a ponto de dar-lhe rosto, foi arrastado até os quadrinhos undergrounds de Crumb, que imitava Mutt até mesmo na forma de se vestir e no bigodinho, assim como o traço lento, encrespado por texturas que representavam os volumes. E por mais que o "estilo pés-grandes" de Crumb tenha sido declaradamente incorporado de Popeye, foi da obra de Fisher que brotou o veio de humor grosseiro, anônimo e agressivo em que navegou  inclusive o célebre marinheiro de Segar. 

Pouco mais se pode falar da "obra" de Fisher. Justamente por ser tão adaptada ao industrialismo da época, foge ao instrumental da Crítica, que, como o supracitado Barthes disse, está ancorada e têm sua existência devido a crença na figura do Autor, aquele baluarte suspenso acima da vida na sociedade capitalista e, como não poderia deixar de ser, seu Redentor. O artista e a Arte são a religião moderna, assim como os críticos são seus sumo-sacerdotes, como bem frisou Alfred Gell. Como maior representante do espiritualismo burguês e de sua Verdade, o autor não pode simplesmente ser banido sem que com isso se expurgue a própria cultura burguesa, com toda a sua História (a qual cabe aqui o papel de Sagrada escritura, como deve ter notado aqui o leitor atento). E quando o autêntico Redentor da alienação capitalista, o artista popular, triunfa com sua não-arte sobre a estética do capital, só pode despertar o ódio da impotente crítica de arte, acordada bruscamente de seus sonhos de potência.





Adendo-


Quando Duchamp, em 1917, tentou inscrever anonimamente "A fonte" em um salão do qual era membro do juri, a criação de Fisher já completava dez anos de sucesso absoluto. Fisher tinha várias qualidades apreciadas por Duchamp, o humor anti-intelectual e bruto, a fatura anônima e a popularidade. Mas também fazia parte de uma nova geração de produtores que fascinava de forma pitoresca o francês, o que significa um quê de sensação de superioridade cultural européia, por parte de Duchamp. De qualquer forma, a assinatura Mutt era facilmente reconhecível, como qualquer professor universitário reconheceria a assinatura "Lady Gaga" hoje em dia. O "R" é a mudança, facilmente identificável por quem está familiarizado com o humor sonoro e dadaísta do francês. Podem significar várias coisas como "are mute". Ou seja, essas fontes contemporâneas, os urinóis, são mudos. "We are mutt", nós somos mudos, ou, quem sabe, "Somos Mutt". Vagabundos atrás de fortuna, glória e a atenção do sexo oposto. A batalha desencadeada diariamente pelo personagem de Fisher por 70 anos. E por todos nós desde a aurora dos tempos.

3 comentários:

  1. Este texto é genial. Aprendi muito sobre tudo, sobre a vida, o lendo. Só pra dar um tostão na conversa sobre a Fonte, a brincadeira aí também é com o fabricante da louça: Mott Works. Aí a associação com o personagem é evidente. Então ele falsifica o fabricante e escolhe um personagem de quadrinhos para assumir.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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