segunda-feira, 19 de março de 2012

George Herriman


George Herriman e seu Krazy Kat foi o motivo pelo qual resolvi escrever sobre quadrinhos. O entusiasmo pela tira - de resto amplamente considerada a melhor tira de língua inglesa de todos os tempos - me levou a querer passar esse entusiasmo e comentá-lo para outras pessoas. Não consigo imaginar outro motivo honesto - além de dinheiro - para se escrever crítica de arte. 


Herriman nasceu em 1880, em Nova Orleans, registrado como “colored” de pais “mulattoes”, em um censo da época. A segregação racial ainda não havia atingido os píncaros do início do século xx, e vários creoles como os pais de Herriman poderiam ter uma vida razoavelmente confortável e uma educação esmerada, como a que o próprio Herriman deve ter recebido (George era versado em três línguas e, segundo testemunhos, excelente intérprete de bandolim e piano). 
O pai de Herriman era uma espécie de faz-tudo que tentou convencer George a segui-lo no ramo de artesão multidisciplinar. O menino não aceitou a sugestão, chegando a colocar um rato morto dentro de um pão, numa das aventuras profissionais em que seu pai o arrastava. Pelo visto o atentado deu resultado e – ao terminar seus estudos básicos aos 17 anos – Herriman pode sair para o mundo em busca da realização de seu sonho: ser cartunista.
Em 1897, Herriman começava sua carreira trabalhando como assistente do departamento de gravuras do Los Angeles Herald, para onde havia vendido um desenho. Três anos depois, como tantos outros jovens e ambiciosos artistas de sua época, pega clandestinamente um trem para Nova York. Lá, começa a trabalhar como pintor de placas e padeiro (às vezes até mesmo os pais estão certos em ensinar um ofício aos filhos). Um ano depois, começa a publicar seus desenhos na revista Judge Magazine, nos jornais de Pulitzer e para o Philadelphia Nort American Syndicate (os syndicates eram distribuidoras de jornais para os subúrbios e pequenas cidades e, depois, para outros países. Pullitzer e Hearst, os dois maiores editores de jornais da época, também tinham os dois maiores syndicates).
Sua primeira tira constante foi Musical Mose (1902), no jornal de Pulitzer, onde a influência temática de Happy Holligan de Opper é visível. Com o tempo, Herriman compreenderá melhor a obra de Opper e será seu legítimo continuador, tanto no desenho quanto no texto. Mas agora, com pouco mais de vinte anos, quase todas as suas criações, como Professor Otto and His Auto, e principalmente Acrobatic Archie e Two Jolly Jackies são abertamente inspiradas no humor de pantomima de Dirks e seus Katzenjammer Kids. Herriman faz parte da geração que criou e configurou a linguagem dos quadrinhos, e muitos de seus inspiradores são seus contemporâneos pouco mais velhos, como o próprio Dirks. 






Mais uma vez, Hearst rouba um cartunista de Pulitzer e, contrata Herriman para fazer parte do seu New York American, em 1904. Herriman, agora disputado pelos dois maiores magnatas das comunicações, sente segurança de voltar para a sua amada Califórnia, onde havia morado no passado, e passa a forncer tiras para os Syndicates. Em 1905, agora para o Los Angeles Times, de Pulitzer, cria a tira com o nome mais engraçado que esse cronista conhece: Major Ozone´s Fresh Air Cruzade, que conta a história de um senhor para o qual sempre falta uma janela a mais para a circulação de ar fresco. Herriman começa a dar exemplos de seu humor insólito, que usaria em profusão em Krazy Kat.


A incrível profusão de personagens de Heriman continua, para diferentes jornais, syndicates e patrões. Em um período de 4 anos ele cria e desenha Bud Smith, Rosy Posy, Mr. Proones, Baron Mooch, Mary´s Home form college e as tiras com animais Alexander, The Cat e Daniel and Pansy (essa, a primeira tira que se tem notícia estrelada unicamente por animais). Em 1909 lança - já nos jornais de Hearst, que nunca mais abandonaria - o antecessor estilístico direto de Krazy Kat,  Gooseberry Sprigg
Apesar de Daniel and Pansy já terem todos os elementos temáticos de Kat, como um mundo povoado por animais com preocupações humanas, humor baseado em diálogos e tiradas insólitas, a tira ainda não apresenta o traço desenvolto de Gooseberry Sprigg, feito em pena metálica, assemelhado a simples notações em guardanapos, ou sketches. E o traço de Herriman é o aliado perfeito de seu humor incongruente e improvisado, ainda que rico em variações e volutas dentro da própria piada.
Gooseberry Sprigg é um pato que começa como um personagem que habita os comentários ilustrados das de eventos esportivos, uma das muitas atribuições dos cartunistas da época. Em pouco tempo ganha vida própria. Uma outra característica de várias criações de Herriman e dos quadrinhos da época, personagens secundários que se transformam em protagonistas de tiras, graças ao carinho do público, ou mesmo à sugestão de um editor.  


Mas foi somente em 1910, quando foi transladado por Hearst para o seu New York Evening´s Journal que, em mais uma criação característica de Herriman,  um rato acerta uma pedra na cabeça de um gato.
  A cena surge como um comentário da trama principal, mas uma das hilariantes obsessões dos personagens de Herriman, que consiste em um casal obsedado pelos seus vizinhos de cima, que nunca aparecem A tira se chamava The Dingbat Family (rebatizada logo depois como The Family Upstairs). Foi somente 4 anos depois - uma lentidão incomum para Herriman - que Krazy Kat passou a ser publicada como uma tira autônoma.

A trama da tira é simples, mas extremamente provocativa e heterodoxa. Nela, um gato preto de sexualidade indefinida (Kat) sustenta uma paixão irremediável por um rato de maus-modos chamado Ignatz, que responde ao amor do protagonista com tijoladas na nuca. Kat, por sua vez, considera as agressões como mensagens amorosas e seu amor por Ignatz só faz crescer. O terceiro vértice desse triângulo e um cachorro chamado Oficer Pupp, estupidamente orgulhoso de suas convicções e que mantém uma paixão recalcada por Krazy. Pupp, evidentemente, detesta Ignatz, que por sua vez é amado por Krazy que parece ignorar a paixão do cachorro. Quase todas as histórias giram em torno das tentativas de Ignatz de agredir Kat com uma tijolada, enquanto Pupp busca impedir a agressão ou prender o rato, quando a mesma agressão - que por sua vez é ansiosamente esperada por Krazy - se cumpre.
Kat, como já dissemos, tem sexualidade indefinida, mas é agressivamente apaixonada por Ignatz, por sua vez um pai de numerosa família. As heroínas dos gibis raramente são responsáveis pelo seu desejo, mesmo em histórias eróticas como Valentina ou Barbarellla, passando da passividade ao orgasmo, graças quase sempre ao desejo do Outro.
Além de ser apaixonada (o) por um pai de família com frequente vida criminosa (Ignatz chega a organizar bandos para roubar o patrimônio de Kat), Kat não parece ter uma ocupação formal, passando o dia tocando bandolim, cantando alguma terra distante longe de onde estão, ou simplesmente dando uma banda por aí. O seu lado artista, boêmio, vagabundo e paquerador não parece ser um obstáculo para o amor devotado do Oficer Pupp, que graças as suas características teria tudo para ser o herói de uma trama tradicional: cumpridor da lei e da ordem, truculento, casto e desinteressado, além de ser, evidentemente um homem de ação. Mas não aqui, em Coconino.
Coconino é o vilarejo, encravado em meio as peculiares formações rochosas de Monument Valley, onde habitam os protagonistas de Krazy Kat. Além dos três, vários coadjuvantes enriquecem a tira como um fabricante de tijolos irlandês, um coiote mexicano de modos aristocráticos, um pato chinês que abandona a sua lavanderia para ser adivinho e uma ave pernalta cosmopolita que sempre se queixa do provincianismo de Coconino. A variedade étnica e cultural de personagens é uma tradição da narrativa americana que vai de Melville ao cinema de horror contemporâneo. Nas narrativas tradicionais, entretanto, a variedade étnica serve somente para emoldurar a relação heterossexual, monocultural e branca dos protagonistas.
Mas nossa protagonista, como dissemos, é negra, boêmia, coquete e de sexualidade indefinida. E o vértice que encima a relação homossexual, multicultural e sadomasoquista em que se baseia a tira "Krazy Kat". Não são somente as relações de Coconino que são diferenciadas, mas o próprio lugar, algo entre o real e o fantasioso, que contribuem para o tom de estranheza que envolve a tira. Afinal, existe uma Coconino, mas não em Monument Valley. Assim como existe Monument Valley, e com rochas que se assemelham a mãos e patas de elefante, ainda que essas mãos não batam palmas nem as patas de elefante saiam passeando por aí, como na tira de Krazy Kat. Coconino habita um limbo entre a verdade e a fantasia, assim como a linguagem da própria Krazy existe entre línguas. O gato comunica-se em um dialeto próprio que vai do yap (o idish novayorquino) ao creole de Nova Orleans, do inglês italianizado do brooklin ao idioleto dos salões aristocráticos representado nos romances do século XIX, isso sem falar no espanhol mexicano e no inglês mestiço das fronteiras navajo. 
Poderíamos afirmar que a linguagem de Kat provêm tanto das origens creole de Herriman quanto ao próprio ambiente dos quadrinhos da época, sempre pronto à assumir a linguagem do gueto e dos incultos, como faziam Outcault ou Opper. Mas isso seria incorrer na simplificação grosseira da crítica biográfica ou social. A linguagem de Kat é uma obra dentro da obra de Herriman, burilada e aperfeiçoada ao ponto da auto-suficiência, como muito da linguagem da vanguarda artística da qual era contemporâneo, notadamente Joyce. De qualquer forma, a linguagem cambiante e indefinida do gato une-se organicamente aos próprios cenários, que flutuam no citado limbo entre a realidade e a fantasia, podendo mesmo modificar-se de um quadrinho para o outro sem que os personagens tenham necessidade de se locomover. Isso sem falar na sexualidade de Kat, ou no caráter dos personagens e nas máscaras sociais que vestem, que pulam de um personagem para outro sem que nenhum acidente biográfico precise ocorrer, como o rato egoísta que torna-se pacífico e bondoso e mesmo Kat, que  pode ter ataques de fúria agressiva.
Segunda a crítica de quadrinhos Sarah Boxer, é justamente esse fluxo, essa indeterminação que mantém o frescor de Kat até os dias de hoje. Sua hipótese pode ser confirmada pela simples leitura ou comparação com outros grandes artistas da época, quase sempre baseados no humor de bordão e na repetição do mesmo. Porque ainda Krazy Kat apresente-se como uma ladainha neurótica, essa ladainha, muito mais que um bordão, parece funcionar pela chave da repetição neurótica dos afetos, como no inconsciente psicanalítico. E ainda que os personagens não tenham aquele estofo, aquele tridimensionalidade estandatizada do romance do século XIX - que se transformou no slogan da arte profunda - podemos conviver com esses personagens como não podemos conviver, por exemplo, com os heróis de Joyce. Por outro lado - e como já foi dito - a pretensão demiúrgica da arte romântica - de mais a mais perfeitamente criticada pelo "Frankstein" de Mary Shelley - não aparece em nenhum momento em Herriman, não por ser despretensioso, mas por sabedoria. Ninguém pode realmente levar à sério o estofo psicológico dos  personagens de romances tradicionais, à não ser por preguiça intelectual. Preguiça, por sinal, cada vez mais costumeira e auto-justificada no trabalhador intelectual contemporâneo, que vê em Saramago e Radiohead o seu lenitivo para o seu exaustivo dia de arrivismo institucionalizado.
Falando em ambiente cultural, Herriman tinha motivos de sobra para ser admirado pelos seus contemporâneos de outras áreas, notadamente a auto-intitulada "vanguarda". A opacidade que aplica ao seu meio, os quadrinhos, sem jamais recair na banalidade da metalinguagem - que grande obra de arte não comenta seu próprio meio? - só poderia deixá-lo atraente aos olhos de homens como e.e.cummings e Willem de Kooning. Ambos, falando de forma grosseira, fazem parte da geração de artistas que usam os estilos das épocas passadas como ferramentas, ou seja, alienando-se propositadamente do estofo ideológico que origina o estilo. Uma forma de atuar que a crítica chamou de "pós-moderna", mas que, na verdade, é moderna até a medula. cummings também tem o mais belo texto crítico sobre Herriman que conheço. Nele, o poeta reconhece Kat como uma entidade  de amor puro, sem ódio e, portanto sem medo, capaz finalmente de estabelecer um ideal democrático, graças a extrema indefinição racial, nacional e sexual por parte do protagonista, acusando, dessa forma, essas mesmas fronteiras (nacionais, raciais, sexuais) como sendo o verdadeiro obstáculo para a democracia. Não existe nada em que esse crítico esteja de mais acordo.


O desenho de Krazy Kat encanta pela sua fluência, provinda tanto da maestria técnica quanto da liberdade em usar os estilos dos quadrinistas anteriores, aliados à pesquisas de outras formas de expressão popular, como a cerâmica mexicana e a tapeçaria navajo, duas paixões de Herriman. Sua fluência inspirou as gerações posteriores do quadrinho underground americano, justamente por falar de vários assuntos (sejam visuais ou não) com a despreocupação de quem conversa com amigos de jornada. Com o texto, a mesma facilidade pode ser percebida. O tom e mesmo a língua dos personagens, muda conforme o cenário e a própria trama. A confiança de Herriman é tal, em seu estilo, que nunca a Unidade da obra é sequer balançada. O porto seguro da indefinição, do frágil e do movediço.












sexta-feira, 2 de março de 2012

Winsor MacCay

  É salutar buscar razões para contradizer nosso próprio juízo. Nos ajudar a fortalecê-lo ou enfraquecê-lo, e mesmo abandoná-lo, quando ele não nos serve mais. De qualquer forma, pode ser um antídoto contra o cânone ou idéias estéticas sem a sua base material legítima, que são as obras de arte. 
Minha admiração por Winsor MacCay (1869 - 1934) é compartilhada por quase todo mundo que saiba quem ele é, dentro e fora dos quadrinhos. Mas, por algum motivo que devo vasculhar, não consigo me apaixonar pelo seu trabalho, apesar de reconhecê-lo como um dos maiores cartunistas de todos os tempos e o maior artista Art Noveau da História. Talvez falte - para mim - um daqueles defeitos que Shakespeare responsabilize pelo Amor ("por qual dos meus defeitos você se apaixonou primeiro?" vai indagar um de seus personagens). Ou me faça falta aquele ruído surdo da resistência da Matéria sobre a Ideia, que MacCay, como todo virtuose, ignora. "A imperfeição é o cimo", dirá Ives Bonnefoy, o poeta e ensaísta dedicado, justamente, ao outro prodígio técnico que nunca deixou de sentir e tematizar essa pressão, Alberto Giacometti. Ou simplesmente me falte debruçar sobre sua obra com a atenção necessária para escrever esse artigo.



Winsor MaCay  é o mais famoso cartunista do começo do século XX e, provavelmente, um dos mais extraordinários artesãos que essa arte - ou qualquer outra - tenham conhecido. Sua única educação formal em desenho foi dada em um curso livre na  Eastern Michigan University, enquanto o próprio MacCay frequentava a Cleary´s Business College, onde os pais o mandaram, como o nome indica, para tornar-se uma homem de negócios. Após um par de anos, MacCay viaja para Chicago para tentar ingressar, sem sucesso, no até hoje célebre School of the Art Institute of Chicago. Sem dinheiro para o curso, MacCay tem a sua primeira experiência como desenhista profissional na National Printing and Engraving Company, onde começou a fazer carreira como cartazista de circo e espetáculos. MacCay abandona a propaganda do circo para ingressar em um dos vários dime museum dos Estados Unidos como desenhista prodígio, além de estrelar alguns talk shows no mesmo estabelecimento. Os dime museums eram uma mistura de circo com gabinetes de curiosidades, de grande apelo popular. O Dime é uma moeda americana de baixo valor (10 centavos), o que indica o extrato social à que o museum é dedicado, em contraposição ao Art Museum, coisa de gente culta e rica. MacCay vai conhecer sua mulher nesse ambiente. 
Evidentemente, um talento como o de MaCay não ficaria limitado à fama circense e, como tantos outros, foi atraído para o mais pujante - e regiamente recompensado - meio artístico dos Estados Unidos da época, as páginas dos jornais. 
MaCay começa a publicar suas tiras e ilustrações no jornal Cincinati Enquirer, de Pulitzer, para depois - em um movimento já muito conhecido por nós e que se repetirá mais algumas vezes - passar para a equipe e os jornais de Hearst.
Seus quadrinhos oníricos começam com o título " A Dream of a Rarebit Fiend", uma expressão idiomática para sonhos amalucados, que tinham a fama de ser causados pela ingestão de coisas pesadas, como a torrada com queijo e manteiga do título. Na verdade uma brincadeira de época similar a contemporânea "azeitona da empada", quando bebemos e comemos demasiado e damos a culpa do vexame em algum detalhe insignificante. 
Os sonhos dessas primeiras tiras, assinadas com o pseudônimo de "Silas", tratam quase sempre da paranóia da vida moderna, das manias sem sentido que mantemos para ter em mãos algo de constante no mundo em fluxo do capitalismo moderno. "Rarebit Fiend" é contemporâneo das publicações de Freud, mas não é do austríaco que o americano trata, e sim da época, do Zeitgeist, como fazem as autênticas criações intelectuais. Uma das coisas mais irritantes de parte intelectualizada da arte contemporânea é justamente a justificativa teórica para o que todos estão vendo e vivendo, vitimando vários grandes nomes do pensamento ocidental como Foucault e Lacan (dependendo da época). A produção direta e baseada na vida é uma carência que faz muitos artistas migrarem para os quadrinhos, como fez esse narrador.


Da neurose da vida onírica adulta, MacCay, que nunca deixou de ser uma criança nem tão crescida, com seu 1,60 e 50 quilos, passa para "Little Nemo", sua criação mais famosa. A escolha por Nemo foi técnica, como era de de se imaginar. Em um ambiente onírico infantil, MaCay poderia desfilar toda o seu vocabulário da ilustração Art Noveau do século XIX, além criar arquiteturas góticas, apesar de reluzentes como as vitrines de seu tempo. MacCay faria habitar esse mundo por personagens típicos dos quadrinhos da época, como negros representados de forma grotesca e ofensiva, e ao mesmo tempo por princesas, deuses gregos e dragões. Ou seja, Maccay usa a Cultura como matéria prima, com a liberdade quase irresponsável que somente os grandes prodígios técnicos conseguem.
Na verdade, tudo o que MacCay quer é desenhar. Sua compulsão era famosa e alardeada pelo próprio artista. Sua atitude infantil com relação à vida, como um exibicionismo singelo, prodigalidade excessiva e ciúmes doentio de sua bela e aparentemente coquete esposa não são exclusividade do autor, mas também fazem parte da vida burguesa e noveau riche que o filho de imigrantes nascido no Michigan vai partilhar com seus contemporâneos e tantos homens de hoje. 
A forma, entretanto, fluida e fácil com que combina em uma só página todos os elementos da fantasia libidinal capitalista - incluindo uma sociedade monárquica em que os recém-conquistados direitos sociais são suprimidos - é realmente espetacular. E nos faz ver essa sociedade capitalista sob uma nova máscara. Ao invés do burguês gordo, materialista, pragmático e contrário a fantasia inútil, vemos o Capital travestido de uma criança burguesa, mimada e prepotente, que gostaria de suprimir o Tempo e o Espaço para realizar a fantasia brilhante de um Mundo como Mercadoria.


A própria forma de conceber a página, como uma unidade resultado de uma multiplicidade, remete não somente ao Cubismo e outras técnicas do modernismo como à propaganda e as vitrines dos magazines que tanto inspiraram esses mesmos movimentos. Ou seja a arte como produto, alcançada pelos Quadrinhos em seu nascedouro, sempre foi uma fantasia (e um recalque) da Arte, como podemos atestar não somente pelo Construtivismo e pelo Pop, mas como por iniciativas como as de Picasso, ainda adolescente em Barcelona, assinando como se fosse uma industria de um homem, e Matisse que chegou a fantasiar sua pintura como um lenitivo, um calmante para o burguês atarefado.
Entretanto, algo do pragmatismo burguês sobrevive na fantasia de MacCay. Seus personagens invariavelmente acordam, e se deparam com um mundo que insiste em se materializar, criando a resistência ao seu desejo. O garotinho burguês cujos serviçais obedecem seus pais mas mandam nele, a senhora cujo progresso material não percebe o quão maravilhoso e desinteressado é o seu amor pelo seu cachorrinho. E talvez seja, justamente, o ponto em que MacCay cede ao lado sombrio do Capital, a sua manutenção do status quo e seu materialismo dogmático, que tem sua versão social mais tenebrosa na economia política e na  real politik.


Essa forma de ver MacCay como o gênio da raça da ideologia burguesa não deve ser visto de forma depreciativa. Grandes artistas podem nos repugnar do ponto de vista ideológico e moral sem que deixemos de admirar o seu trabalho, como John Ford, Wagner, Tostoy e tantos outros. Ainda mais nos quadrinhos, um meio notadamente reacionário. Por outro lado, ao nos alienarmos sobre características específicas de um autor, corremos o risco de nos tornarmos fetichistas dogmáticos. Também não temos direito, entretanto, a obrigar alguém a gostar de uma obra pelo qual sente repulsa vital, como um judeu que realmente se incomodasse com o anti-semitismo de Tostoy, ou uma mulher negra que não suportasse ver até o final "Nascimento de uma Nação" de Griffith. Não é o meu caso com relação a MacCay.
De qualquer forma, é pouco produtivo cobrar de um artista o que ele não nos oferece, pelo menos como críticos de arte, como atentou com perfeição Lionello Venturi. Em outras palavras, não podemos pedir um desenho mais limpo e sintético de Crumb, ou mais detalhado e descritivo de Pratt, se o que interessa para o primeiro é passar uma ideia de impureza e obsessão e para o segundo criar uma narrativa leve, ágil e algo etérea. 
O que podemos é criticar os desenhos atuais de Moebius em que a luz sobrenatural de seus mundos cede espaço para um colorido pesado, sem imaginação. Ou quando a secura narrativa de Spiegelmann cede espaço a uma auto-celebração melosa e emocional.

Na verdade, o único momento em que a arte de MacCay cai de qualidade é quando seu chefe, o magnata das comunicações Willian Randolph Hearst, o transfere dos quadrinhos para a ilustração de um moralista e pedagogo da época, Arthur Brisbane, por pensar que um talento como MacCay não poderia perder seu tempo com os quadrinhos.  Um preconceito comum, que persiste até os dias de hoje, e do qual até mesmo homens de visão como Hearst - que, afinal, é um dos maiores mecenas das histórias em Quadrinhos de todos os tempos - cultivam. O resultado foi a queda de qualidade do trabalho de MaCay, aprisionado por temas de Brisbane como “Thank Heaven for Progress,” e “Our Glorious Public School,” e sua não muito posterior morte, por absoluta tristeza, privado do seu mundo particular de fantasia e aprisionado nos textos edificantes. Não seria a primeira, nem a última vítima da pedagogia. Afinal, o enquadramento a que um texto edificante acaba por limitar uma ilustração, acaba por violentar um homem que havia criado, antes ainda de Little Nemo, o personagem Little Sammy Sneeze, cujos espirros chegavam a destruir os quadrinhos da página.  


Existe uma história de MaCay que está entre as minhas favoritas de todos os tempos. Nela, um cartunista busca uma ideia e é atrapalhado pelo próprio MacCay, em um de seus raros auto-retratos. Aqui o texto - uma das poucas coisas que pode realmente ser criticado em Nemo - é delicioso. Minha preferência deve-se, acredito, à resistência de Mundo que aparece na tira, do criador sofrendo as agruras do cansaço, do tédio, do sono e do calor, e tendo como vilão o próprio ele mesmo, imerso de forma egoísta em seu próprio mundo. a linha grossa que cerca os personagens parece reiterar essa leitura, assim como a ausência de cenário. O trabalho como alienação, mesmo o trabalho criativo, culmina a obra.

Ainda que não houvesse desenhado sequer uma página de quadrinhos, Winsor MacCay seria um dos maiores nomes da cultura contemporânea por ter sido um pioneiro dos desenhos animados, tendo influenciado profundamente Walt Disney. 
O melhor texto que conheço sobre ele é do excelente Jeet Heer, chama-se "Little Nemo in Comicsland" e pode ser encontrado no site do Virginia Quaterly Review, uma revista sobre literatura e cultura.