quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Bud Fisher



Bud Fisher pode não ser o maior artista dos primórdios dos comics, mas existe a possibilidade de ser o mais importante. Afinal, foi ele que, ainda em 1907, estabeleceu o formato da tira horizontal, preto e branca e que, apesar da piada conclusiva no último quadro, sugeria uma continuidade. Também criou somente um enredo, baseado nos amigos Mutt e Jeff, com o qual se ocupou toda a vida, o que o aproxima muito mais do fabricante especializado do que do "artista criativo", seja lá o que isso queira dizer. Ou seja, Fisher não somente encontrou a galinha dos ovos de ouro das tiras diárias, mas literalmente a concebeu. E ainda registrou em seu próprio nome, tornando-se o primeiro cartunista a ser o milionário, dono do próprio produto. Aliás, poucos artistas souberam tão bem adaptar a sua obra ao capitalismo da sociedade industrial como Fisher, e provavelmente somente Walt Disney o tenha superado.
Mas vamos ao principio. 

Harry Conway "Bud" Fisher (1885 – 1954) nasceu em Chicago, Illinois. Cursou por três meses a Universidade de Chicago, que abandonou para fazer desenhos para o departamento de esportes do San Francisco Chronicle. Por essa época, a sessão de esportes era preenchida quase sempre por cartuns, devido a carência de recursos visuais para acompanhar a notícia, como câmeras de alta velocidade ou mesmo qualquer aparelho de reprodução mecânica. De qualquer forma, George Herriman começou como cartunista esportivo e homens como TAD ( Thomas Aloysius Dorgan ) eram verdadeiramente célebres por sua época. 
TAD, aliás, merece algumas palavras à parte, por ser tão típico desse momento de criatividade da imprensa do início do século passado, ainda sem a formatação e a padronização das décadas posteriores. Afinal, desde 1890,  quando trabalhou no San Francisco Bulletin, TAD acumulava as funções de cartunista e cronista esportivo, principalmente na área de Boxe, na qual era considerado um expert. TAD também se celebrizou pela criação de uma série de expressões que acabaram perenemente fazendo parte da gíria americana, como "hard-boiled",  "dumbbell", “drugstore cowboy”  e mesmo o slogan "Yes, we have no bananas", que se transformaria em música nos anos 40.  Seu cartum mais famoso era "Judge Rummy" depois chamado de "Silk Hat Harry's Divorce Suit", acompanhado quase sempre pelo cartum de uma imagem chamado "Indoor Sports", esses últimos para o New York Evening Journal, do onipresente William Randolph Hearst. Abaixo o exemplo de uma página de esportes da época, quase toda desenhada, e as duas tiras de TAD. Convém lembrar que uma delas é protagonizada por animaizinhos e que o próprio Herriman trabalhou junto a TAD, antes de criar suas próprias tiras com animais. 




Silk Hat Harry's Divorce Suit


Indoor Sports
Foi nesse ambiente do cartunismo esportivo que apareceu, ainda em 1903, o cartum "A. Piker Clerk", de Claire Briggs. O cartum tinha como assunto o próprio Piker Clerk , um apostador compulsivo na corrida de cavalos, a grande febre da primeira década americana (o próprio nome do personagem é um trocadilho com as diversas gírias para apostador, em inglês). A tira durou pouco, segundo a lenda infundada, por ter sido considerada "vulgar" por Hearst. Fábula difícil de engolir na biografia de um dos fundadores da imprensa sensacionalista. De qualquer forma, mesmo com o sucesso, Piker Clerk dura pouco, mas é evidente inspiração para a mais popular tira de jornal do começo do século, Mutt & Jeff. 



Duas Tiras com Piker Clerk, na anterior notamos algo da horizontalidade da tira habitual, que seria padronizada principalmente por Fisher.

Após trabalhar dois anos como desenhista do departamento de esportes do San Francisco Chronicle, Fisher publicou, em 1907, uma tira em um lugar e forma pouco usuais até então. Aproveitando o cabeçalho do jornal, ao invés do espaço deixado pelas colunas, Fisher lança o que seria conhecido depois como top strip, as tiras que encabeçam as histórias maiores - ou as ilustrações maiores - da página. A tira se chamava "A.Mutt" e é claramente inspirada na anterior, de Claire Briggs. O próprio formato - a tira horizontal - já havia sido usado antes, assim como o balão de diálogos por cartunistas antes de Opper e Dirks. O que esses artistas fizeram foi transformar em método e forma as intuições de seus antecessores. Em uma entrevista posterior, Fisher afirmaria que seu propósito, ao colocar a tira naquela posição e formato era "chamar a atenção".
Não se tem notícia de Briggs ter se irritado com a clara alusão ao seu personagem (até a roupa e o aspecto físico de Mutt e Piker coincidem . Isso em razão justamente da pouca propriedade que os criadores tinham sobre suas obras. Relação que Fisher também vai revolucionar, como veremos a seguir. Aqui duas tiras de "A.Mutt". 





Fisher publica a tira por um ano com Mutt. As piadas são variações das histórias de vagabundos dos cartuns da época, mais seu pé na realidade é uma novidade que faz sucesso: os cavalos em que Mutt aposta - e invariavelmente perde - eram reais, e tanto os leitores quanto o próprio Fisher tinham que esperar o dia seguinte para saber o resultado das apostas do personagem. Um dós-de-peito de realismo poucas vezes igualado pela "arte-vida" das vanguardas, neo-vanguardas e quetais. 
Em três semanas o sucesso da tira transfere Fisher do Chronicle para o San Francisco Examiner, pelo dobro do salário (algo como 45 dólares semanais, em uma época em que um trabalhador ganhava a média de 1 dolar/dia ). Um ano depois, Mutt conhece em um hospício um baixinho que dizia ser um antigo campeão de boxe, Jeff, e os dois recriariam, com êxito sem precedentes, as célebres duplas de vaudeville, que já habitavam os cartuns desde os tempos de Opper. 


Em 1909, Fisher é novamente transferido para outro jornal de Hearst, dessa vez o  New York American e se torna um sucesso nacional. Em 1915, ao término de seu contrato com Hearst, começa a trabalhar diretamente com a distribuidora, a Wheller Sindicate,  já que Fisher, em um gesto inédito, havia registrado os personagens em seu nome. Pela primeira vez um dono de jornal é fragorosamente derrotado em uma batalha judicial. Fisher agora, dono de sua própria criação, ganha uma média de 1000 dólares semanais por seis tiras, sem contar as dominicais. Em 1921 a Bell Syndicate começa a comercializar suas tiras, pagando um salário de 4.600 dólares semanais. E Fisher, a essa altura do campeonato, já tinha a sua própria produtora de filmes.  
Após a tentativa de um estúdio de New Jersey produzir uma série de filmes curtos sobre Mutt & Jeff em 1911, o próprio autor resolveu fundar a sua produtora, a Bud Fisher Film Corporation, criando 36 filmes curtos sobre a dupla até 1916. Após um incremento em sua companhia, o que incluía a total ausência de Fisher, substituído por um advogado que pagava as contas e desenhistas competentes que cuidavam da produção, chegou a produzir mais de duzentos e setenta filmes em 10 anos.
Em um período de 7 anos, Fisher passara de um cartunista bem pago para o mais rico e bem-sucedido cartunista de sua época, chegando a acumular mais de 250 mil dólares por ano com seus ingressos. Deixara de desenhar pessoalmente suas tiras em 1915, quando contratara Ed Mack do poderoso Hearst, que havia acabado de derrotar judicialmente. Ao que consta, Fisher contribuía cada vez menos, e, quando Ed Mack falece, em 1934, e Al Smith assume, Fisher não passa de uma assinatura imponente e um cheque enviado por um advogado no final do mês. Embora Fisher já não fizesse muito durante a produção de Mack, é com Smith que a tira assume seu aspecto de produto insípido, com um desenho absolutamente formal e piadas que, se já não eram de um brilhantismo intelectual notável, aproximam-se da nulidade. Um produto movido unicamente pela inércia do consumo, lido por mais 50 anos (até 1982!) porque foi anteriormente lido por trinta anos. Curiosamente, o próprio Smith só começa a assinar a tira com a morte de Fisher, em 1954.


tira de por Al Smith, assinada por ele. privilégio que demorou mais de trinta anos para conseguir.


Entre sua ascensão meteórica, nos anos 20, e sua morte, nos anos 50, Fisher ainda conseguiu acumular a dois casamentos com finais escandalosos, cavalos de corrida ganhadores de grandes prêmios, a fama de um bon vivant beberão e beligerante e inúmeras manchetes dos jornais do rancoroso Hearst, disposto a mostrar para a América o verdadeiro rosto do homem que havia conseguido os direitos sobre sua própria criação. Morreu enlouquecido e solitário em um enorme e decadente apartamento em Park Avenue, visitado pelos amigos cartunistas que havia esnobado durante o seu estrelato. 


Como obra de arte, Mutt & Jeff tem a força das grandes e anônimas obras populares. Esse anonimato estrutural, quase telúrico, foi perseguido por vários grandes artistas do século XX, de Duchamp a Warhol, sem falar em Dorival Caymmi, que queria fazer uma música que fosse tão simples e boa quanto "ciranda, cirandinha". Talvez o brasileiro seja o que tenha chegado mais perto, facilitado pelo meio, é claro, já que as chamadas fine arts são, mais do que as artes populares, calcadas na figura burguesa e capitalista do autor, como bem frisou Barthes. 

Seu desenho, ancorado na própria época a ponto de dar-lhe rosto, foi arrastado até os quadrinhos undergrounds de Crumb, que imitava Mutt até mesmo na forma de se vestir e no bigodinho, assim como o traço lento, encrespado por texturas que representavam os volumes. E por mais que o "estilo pés-grandes" de Crumb tenha sido declaradamente incorporado de Popeye, foi da obra de Fisher que brotou o veio de humor grosseiro, anônimo e agressivo em que navegou  inclusive o célebre marinheiro de Segar. 

Pouco mais se pode falar da "obra" de Fisher. Justamente por ser tão adaptada ao industrialismo da época, foge ao instrumental da Crítica, que, como o supracitado Barthes disse, está ancorada e têm sua existência devido a crença na figura do Autor, aquele baluarte suspenso acima da vida na sociedade capitalista e, como não poderia deixar de ser, seu Redentor. O artista e a Arte são a religião moderna, assim como os críticos são seus sumo-sacerdotes, como bem frisou Alfred Gell. Como maior representante do espiritualismo burguês e de sua Verdade, o autor não pode simplesmente ser banido sem que com isso se expurgue a própria cultura burguesa, com toda a sua História (a qual cabe aqui o papel de Sagrada escritura, como deve ter notado aqui o leitor atento). E quando o autêntico Redentor da alienação capitalista, o artista popular, triunfa com sua não-arte sobre a estética do capital, só pode despertar o ódio da impotente crítica de arte, acordada bruscamente de seus sonhos de potência.





Adendo-


Quando Duchamp, em 1917, tentou inscrever anonimamente "A fonte" em um salão do qual era membro do juri, a criação de Fisher já completava dez anos de sucesso absoluto. Fisher tinha várias qualidades apreciadas por Duchamp, o humor anti-intelectual e bruto, a fatura anônima e a popularidade. Mas também fazia parte de uma nova geração de produtores que fascinava de forma pitoresca o francês, o que significa um quê de sensação de superioridade cultural européia, por parte de Duchamp. De qualquer forma, a assinatura Mutt era facilmente reconhecível, como qualquer professor universitário reconheceria a assinatura "Lady Gaga" hoje em dia. O "R" é a mudança, facilmente identificável por quem está familiarizado com o humor sonoro e dadaísta do francês. Podem significar várias coisas como "are mute". Ou seja, essas fontes contemporâneas, os urinóis, são mudos. "We are mutt", nós somos mudos, ou, quem sabe, "Somos Mutt". Vagabundos atrás de fortuna, glória e a atenção do sexo oposto. A batalha desencadeada diariamente pelo personagem de Fisher por 70 anos. E por todos nós desde a aurora dos tempos.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Prison Pit de Johnny Ryan


Para escrever essa crítica cheguei a começar meus estudos sobre Johnny Ryan. Seu genial e detestável " Angry Youth Comix" e suas menos brilhantes intervenções na revista VICE, já haviam chamado minha atenção. Mas a luz que Prison Pit lança sobre toda a sua obra e sobre várias outras obras de arte em geral merece ser tratada com rapidez e sem o polimento que uma pesquisa em revistas, estantes e sites acabam por trazer à crítica de arte. A internet em geral, traz esse conhecimento útil e acessível, que acaba por melhorar o texto, mas talvez melhorar não seja o caso.



Jonnhy Ryan trabalha rápido e sem peixas, e seu assunto sempre foi o ódio (não por acaso, seu parceiro mais célebre é Peter Bagge, o lendário autor de "Hate"). E o seu ódio em Prison Pit é generalizado e transformado e pura violência animal. Ou melhor, violência infantil, ou mesmo dos bebês.
Como o grande artista plástico Paul MacCarthy - e como as crianças muito pequenas - Ryan se compraz em fazer a coisa errada. Em destruir o que está ordenado, sujar o que está limpo, e arrasar o que já está cambaleando. O enredo é simples e onírico, Um monstro espacial vestido de lucha libre é jogado em uma espécie de planeta-prisão. Já em sua queda o protagonista se atraca ferozmente com uma espécie de guarda, em uma luta que dura aproximadamente umas 30 páginas, envolvendo tripas vivas que chegam a imobilizar o herói, membros decepados, sangue vomitado e por aí vai. O capítulo se chama "Fucked" e é seguido pelo capítulo 2, "Megafucked" em que o mesmo herói encontra agora 3 antagonistas, e seguem-se mais 30 páginas de cabeças decepadas, membros arrancados, seres viventes esmagados por pedras enormes. O herói de Prison Pit tem seus rituais logo após vencer o combate: devora uma parte do adversário, como o coração ou mesmo a cabeça, chuta o seu cadáver ensanguentado e mija no mesmo, soltando alguma ofensa. E assim se desenvolve toda a história, por vários capítulos dispersos em 4 tomos.



Paul MacCarthy em santa Chocolat Pop, de 1997 e um quadrinho de Prison Pit.

Apesar de atacado várias vezes, o herói causa muito de sua miséria, esmagando pequenos seres por nenhum motivo aparente, sendo incapaz de negociar ou mesmo deixar de ofender qualquer ser vivo que atravesse o seu caminho. Ele é puro desejo de destruição. E não a destruição para a perpetuação da vida, ou seja, a caça animal. E, Pelo menos nesse primeiro livro, nenhuma fêmea de nenhuma espécie é encontrada. Ele é como o clássico herói dos quadrinhos Ranxerox, pelo menos em sua origem underground e preto e branco, onde sequer as crianças que oferecem flores são poupadas. Ambas são obras culturais que fazem o sentido da afirmação de Benjamin que reza que toda obra de civilização é uma obra de barbárie.


Freud, em algum lugar de sua obra, fala dos artistas como pessoas que tratam principalmente das pulsões e desejos humanos de forma palatável, por intermédio da arte, para que por meio da sublimação dos seus instintos na forma, justamente, de obras de arte, eles consigam o que queriam desde o princípio: sexo, conforto, reconhecimento (exatamente nessa ordem). Ou seja, os artistas querem o que todos querem, e falam exatamente sobre isso, mas de forma mascarada, vestida de Cultura e Civilização.

A artista plástica Andrea Fraser realiza em 2003 um de seus melhores e mais pujantes trabalhos. O conteúdo da obra é simples: um colecionador interessado em adquirir uma de suas obras é convidado a ser, ele mesmo, parte de uma obra de arte. Sua participação na obra seria fazer sexo com a artista,  que gravou tudo e realizou 5 cópias. A obra, muito convenientemente, se chama em "Untitled".  Esse trabalho propõe duas inversões brilhantes. A primeira trata da alienação do artista promovida pelo Capital, que reifica as propostas mais radicais transformado-a em mercadoria. Em Fraser é o próprio comprador que é reificado, além de passar pela degradação que a prostituição promove, segundo Marx, muito mais à quem paga e ao próprio dinheiro do que a quem se prostitui. A segunda inversão acontece á propósito do argumento da sublimação de Freud, que tratamos logo acima. Fraser desmascara do que se trata ter uma coleção de arte, desmascara o Capital Cultural e mesmo sua produção.


Andrea Fraser, Untitled, 2003

 Prison Pit, sem chegar à tanto, vai mais longe, mantendo aquele grau de inconsciência que Adorno julga tão importante a obra de arte e que faz tanta falta à maior parte da produção de arte contemporânea, cartesiana até mesmo em sua loucura. Ryan ignora a parte da sublimação e mediação da obra de arte, praticando o sadismo e demonstrando sua frustração de civilizado em absolutamente todas as páginas do livro. Mesmo o lugar de Tânatos não chega a ser diferenciado de Eros. E, assim como a masturbação é o único ato de amor possível no livro, o pênis do personagem é uma clava crivada de espinhos. Nenhuma parte da obra é passível de se harmonizar com a outra. Tudo funciona da potência máxima da entropia e do embate (do desenho ao texto), assim como em Matisse todas as cores apresentam-se em sua máxima potência para se harmonizar. É o sonho da democracia burguesa em contraste ao sonho primevo do parricídio e do incesto.


Quando eu era criança, desenhava somente batalhas entre monstros, como tantos de meus colegas de classe. Meu filho de um ano esmaga seus brinquedos prediletos, e morde sua própria mãe nos arroubos afetivos. A saúde que emana de sua obra provêm daquele estágio do nenê ainda ligado à mãe, ou da criança um pouco mais velha, ais ainda assim incapaz de selecionar seus sentimentos e sensações na moldura do comportamento social afetivo. Depois destruímos sua espontaneidade, ensinando-os a fingir e a amar como na televisão. E é só nesse momento que aparece o ódio. Desse soterramento violento de nossos impulsos. Por isso, caros amigos, eu digo: Prison Pit é uma obra de amor. E de tudo de bom que vem desse amor.






domingo, 13 de maio de 2012

Lyonel Feininger e Gustave Verbeek


A primeira década do século XX foi, na opinião desse crítico, a mais espetacular na história dos quadrinhos. A força repressora do capital ainda não havia se solidificado na figura dos sindicates, que mal haviam se constituído, e os artistas criadores tratavam diretamente com os editores dos jornais. Esses mesmos sindicates, em pouco tempo, modificariam radicalmente esse cenário, servindo de distribuidores do produto-quadrinhos e criando demandas que deveriam ser seguidas à risca pelos artistas, com o risco de serem jogados no ostracismo. Evidentemente, os editores de jornal não são os mecenas dos sonhos - a maior criação de Dirks é uma encomenda de cópia de uma tira européia - mas o público acabava elegendo suas tiras favoritas, dotando os criadores acabavam tendo um poder de negociação muito maior. Os sindicates são os atravessadores da cultura, como os curadores da arte contemporânea dos dias de hoje, castrando o artista-criador do contato com o meio e colocando-o na redoma de cristal que só o ajuda a produzir o produto encapsulado e anêmico da imaginação pouco febril dos próprios atravessadores de cultura. O marketing também pode cumprir com perfeição o papel de emasculador cultural, ainda com mais potência se tiver o auxílio da pedagogia. De qualquer forma, foi a própria competição capitalista entre os dois maiores magnatas da imprensa que catapultou a produção de quadrinhos, e o caso de Feininger, que foi pescado em Berlim por um editor do Chicago Tribune de olho na enorme fatia de leitores alemães residentes na cidade, é exemplar. A "criação de demandas imaginárias", tão vilipendiada pelos seus críticos menos argutos do capital, é, sem sombra de dúvidas, a maior impulsionadora da criação de obras de arte desde, pelo menos, a Antiguidade. E isso não seria diferente, muito pelo contrário, com uma arte industrial como os quadrinhos. Já que citamos Dirks, foi para concorrer com seu Katzehammer Kids que Feininger foi chamado. De quebra, conseguiu criar duas tiras, Kin-der-Kids e Wee Willie Winkie's World, que concorriam em sofisticação com o olímpico MacCay e inspiraram o furor criativo de Herriman.




Lyonel Feininger (1871-1956, New York) é um desses casos de inquietude do qual a arte moderna (e a contemporânea) é tão devedora. Pintor, gravador, fotógrafo e músico erudito, Feinninger é filho da segunda leva de migrações em massa que lotou as cidades americanas e ajudou a criar o público necessário para o meio jornalístico e de cartuns, que a geração posterior, a de Opper e do próprio Feininger, iria estruturar e revolucionar por mais de 30 anos.
Sua inquietude pode ser notada em sua própria biografia. Feinninger nasce em Nova York, filho de músicos eruditos alemães (a mãe era cantora lírica e o pai violinista) e aos 17 anos muda-se para Berlim para matricular-se em uma universidade de música . Feininger abandona a arte dos pais para dedicar-se ao estudo das artes plásticas em diversos cursos e academias. Entretanto, é com caricaturas e desenhos para o jornal que sua carreira se inicia, aos 20 anos. Ao ser procurado, em 1906, pelo editor do Chicago Tribune, Feininger já é um chargista de reputação sólida, e recebe a encomenda de criar uma tira para o jornal. Após nove meses, graças a sua recusa em mudar-se para os Estados Unidos - os cartunistas trabalhavam diretamente na redação - a tira é interrompida. Feininger ainda iria viver na Alemanha por muitos anos, até a subida do partido nazista ao poder e o uso de sua gravura na capa do catálogo da célebre "Exposição dos Degenerados", em 1936, promovida pela propaganda do III Reich. Feininger retorna aos Estados Unidos no ano seguinte e nunca mais volta à pátria de seus pais. 
O período de Feininger que nos interessa, portanto, é muito curto.Inicia-se em 1906, quando o artista contava com 35 anos,  e termina nove meses depois, com a interrupção de suas duas assombrosas criaçãos: The Kin-Der-Kids Wee Willie Winkie's World.


















A primeira coisa que salta aos olhos na tira é a extrema estilização, herdeira tanto do Art Deco internacional quanto do expressionismo europeu. Essa já é uma contribuição incomensurável para um desenho ainda vinculado as raízes da gravura francesa do século XIX. Os americanos conheciam, e bem, tanto a "arquitetura de engenharia" quanto os produtos Deco, mas levar a ponta de uma produção ainda não assentada  na cultura - como o Art noveau de MacCay era há décadas - foi uma ousadia tanto de Feininger quanto de seus editores. De toda a forma, os manuais de História da Arte tratam o expressionismo como uma irrupção da subjetividade sobre a realidade observada, criando uma arte muito mais de volição do que de consciência. O abandono das regras de anatomia e perspectiva, um obstáculo a essa subjetividade selvagem e essa arte feita da vontade, passa de uma opção filosófica a um "estilo" internacional, como aconteceu com toda a arte ocidental. O expressionismo de Feininger, no entanto, não é simples opção por uma moda europeia, mas uma autêntica adesão a uma liberdade, a um fluxo criativo, como podemos notar não somente em seu magnífico desenho mais na trama insólita de ambas as tiras. Na verdade, os personagens de Feininger não tem aquela tridimensionalidade, aquela interioridade que apresentam os personagens das narrativas tradicionais. Eles são muito mais imagens do que personagens. Sem uma trajetória que justifique seus atos presentes ou seu aspecto tão estapafúrdio quanto das próprias tiras. E é a Liberdade da Imagem que vemos no menino robô Little Japansky, pescado no mar pelos outros personagen quando ainda era somente um mecanismo de relógio (talvez o primeiro robô-herói dos quadrinhos), ou o sensacional Mysterious Pete, um soturno cowboy, sempre envolto em sua capa e com o chapéu mau deixando ver os olhos ameaçadores. E Mysterious Pete, não é, como podem pensar os apressados, o antagonista dos heróis da tira, mas seu mentor e protetor. Existem ainda Strenuous Ted (uma caricatura de Ted Roosevelt), e Daniel Webster, o mais esperto dos meninos, já que leva o nome do tradicional dicionário. Um cachorro chamado Sherlock Bones e assim por diante. Todos eles viajam em uma grande banheira, incumbidos de uma missão misteriosa por Mysterious Pete. Um par de velhas carpideiras acompanha á distancia as aventuras dos meninos, às vezes informadas de forma telepática por Mysterious Pete, e assim por diante. A trama não tem o menor sentido, filosófico que seja, e as "aventuras" assemelham-se, como já frisamos, mais a imagens, a gags visuais absurdas do que propriamente a capítulos de uma saga desenvolvida. Apesar da interrupção prematura da tira, nada indica uma resolução ou sequencia causal entre os eventos em algum futuro. Kin-der-Kids é sensacional, e o frescor de seu desenho assemelha-se às melhores criações infanto-juvenis contemporâneas, principalmente a desenhos animados geniais como Bob Esponja,  Flapjack e outros. 




Wee Willie Winkie é a mais famosa música de ninar de língua inglesa, composta na Escócia no século IX, sua fama tornou-a quase anônima e produto da cultura. Feininger transforma Willie Winkie em um estranho garoto com feições envelhecidas, que se maravilha com um mundo totalmente antropomorfizado. 
Ainda que as pranchas de Willie Winckie tenham a mesma estupenda qualidade de desenho e diagramação que Kin-der-Kids, Feininger opta por uma forma mais tradicional - e mesmo antiquada - de inserir o texto, com quadros explicativos abaixo ou acima das figuras. Esse texto, por sua vez, também têm um teor mais tradicional, algo calcado nos livros infantis de contos de fada.  
De qualquer forma, e ainda que as intenções não sejam as mesmas de Kin-der-Kids, as duas tiras formam um corpus excepcional e uma enorme contribuição para a história dos quadrinhos e, por conseguinte, para a Cultura Ocidental. 
Dorival Caymmi dizia que queria compor uma música tão simples e eficaz quanto "Ciranda Cirandinha". Feininger criou algo tão complexo e desmedido como a fantasia das crianças que cantam essa canção.


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Um outro exemplo do tipo de ousadia que os quadrinhos eram capazes em seus primórdios era a tira mais famosa de Gustave Verbeeck, " The Upside Downs of Little Lady Lovekins and Old Man Muffaroo", que foi publicada de 1903 a 1905 no The New York Herald. A história, que podia ser lida em dois sentidos, tinha como protagonistas uma menina de chapéu de fita e um velho bigodudo, que trocavam de ligar quando se virava o jornal de cabeça pra baixo, assim como a canoa em que navegava Mufarro se transforma no bico do pássaro gigante que captura Lovekins e assim por diante. abaixo, exemplos da tira nos dois sentidos. 



Existe um determinado tipo de crítica de arte que pode ser chamado de classicista (e a proximidade com o preconceito social não é somente sonora, como veremos adiante). Essa crítica acredita na evolução gradual de determinadas formas de expressão que atingiriam um píncaro depois de um período de aprendizado e purificação, fatalmente decaindo logo depois desse seu momento clássico, por assim dizer. Gente culta, progressista e importante para a arte moderna acreditou nessa leitura, assim como acreditava que as esculturas gregas do século V eram obras do mais puro bom-gosto e desinteresse estético, e que não eram adornadas com pedras preciosas, pintura multicolorida e mesmo jogos de cenas e luzes nas câmaras que as guardavam. Posteriormente, os avanços da arqueologia desmistificaram a falsa pureza da arte grega clássica, mas o conforto da ideia permaneceu. Sendo aplicado mesmo a áreas e arte anti-clássicas por excelência, como o rock e os quadrinhos. Não por acaso, e esse é o ponto que quero chegar, essas artes germinaram em um solo ausente do cânone europeu, e, felizmente, alheia à ele, quando não abertamente adversária. 
Pois bem, uma crítica de arte classicista, iria considerar "The Upside Downs" uma obra maneirista, que troca a Verdade Estética por truques de prestidigitação e divertimento, como tanto se queixava Kant da arte cortês do século XVIII, sua contemporânea. Kant, evidentemente, era um homem de seu tempo. Um eurocêntrico, algo filisteu, que buscava libertar o próprio pensamento do prisão cristã da alma, assim como Darwin e tantos outros. Que os argumentos tanto de um quanto de outro sirvam para julgar obras de arte no pós-pós-estruturalismo, na época do genoma e do benfazejo multiculturalismo faz parte do provincianismo colonizado e classista de que venho falando. 
De qualquer forma, não é a perfeição da Forma ou da Ideia que os melhores quadrinhos do começo do século XX buscam, porque eles não buscam nada além de conquistar o público mínimo para sua continuidade e, portanto, a subsistência de seu criador. E é justamente esse caráter anti-filosófico, no sentido forte, marxista se preferirem, que, na minha opinião, fez o melhor dos quadrinhos daquele início de século. Abaixo, mais duas criações do nascido japonês e filho de missionários holandeses Gustave Verbeek (1867, Nagazaki, 1937, New York). Nelas, podemos notar um outro procedimento, próximo tanto das crianças quanto das futuras manifestações surrealistas, a metonímia brincalhona, quase sempre envolvendo animais. A proximidade de objetos radicalmente diferentes pela proximidade sonora faz a alegria inclusive dos adultos, que se divertem com as confusões dos filhos durante o aprendizado. A violência e o mau-gosto de várias histórias também remetem ao linguajar e ao psiquismo infantil, além de ligá-los indefectivelmente à sua própria época, onde uma boa piada no jornal, aparentemente, deveria culminar com alguém ferido ou tomando uma surra. A singeleza do desenho de Verbeek só acrescenta graça e radicalismo às suas propostas.








segunda-feira, 19 de março de 2012

George Herriman


George Herriman e seu Krazy Kat foi o motivo pelo qual resolvi escrever sobre quadrinhos. O entusiasmo pela tira - de resto amplamente considerada a melhor tira de língua inglesa de todos os tempos - me levou a querer passar esse entusiasmo e comentá-lo para outras pessoas. Não consigo imaginar outro motivo honesto - além de dinheiro - para se escrever crítica de arte. 


Herriman nasceu em 1880, em Nova Orleans, registrado como “colored” de pais “mulattoes”, em um censo da época. A segregação racial ainda não havia atingido os píncaros do início do século xx, e vários creoles como os pais de Herriman poderiam ter uma vida razoavelmente confortável e uma educação esmerada, como a que o próprio Herriman deve ter recebido (George era versado em três línguas e, segundo testemunhos, excelente intérprete de bandolim e piano). 
O pai de Herriman era uma espécie de faz-tudo que tentou convencer George a segui-lo no ramo de artesão multidisciplinar. O menino não aceitou a sugestão, chegando a colocar um rato morto dentro de um pão, numa das aventuras profissionais em que seu pai o arrastava. Pelo visto o atentado deu resultado e – ao terminar seus estudos básicos aos 17 anos – Herriman pode sair para o mundo em busca da realização de seu sonho: ser cartunista.
Em 1897, Herriman começava sua carreira trabalhando como assistente do departamento de gravuras do Los Angeles Herald, para onde havia vendido um desenho. Três anos depois, como tantos outros jovens e ambiciosos artistas de sua época, pega clandestinamente um trem para Nova York. Lá, começa a trabalhar como pintor de placas e padeiro (às vezes até mesmo os pais estão certos em ensinar um ofício aos filhos). Um ano depois, começa a publicar seus desenhos na revista Judge Magazine, nos jornais de Pulitzer e para o Philadelphia Nort American Syndicate (os syndicates eram distribuidoras de jornais para os subúrbios e pequenas cidades e, depois, para outros países. Pullitzer e Hearst, os dois maiores editores de jornais da época, também tinham os dois maiores syndicates).
Sua primeira tira constante foi Musical Mose (1902), no jornal de Pulitzer, onde a influência temática de Happy Holligan de Opper é visível. Com o tempo, Herriman compreenderá melhor a obra de Opper e será seu legítimo continuador, tanto no desenho quanto no texto. Mas agora, com pouco mais de vinte anos, quase todas as suas criações, como Professor Otto and His Auto, e principalmente Acrobatic Archie e Two Jolly Jackies são abertamente inspiradas no humor de pantomima de Dirks e seus Katzenjammer Kids. Herriman faz parte da geração que criou e configurou a linguagem dos quadrinhos, e muitos de seus inspiradores são seus contemporâneos pouco mais velhos, como o próprio Dirks. 






Mais uma vez, Hearst rouba um cartunista de Pulitzer e, contrata Herriman para fazer parte do seu New York American, em 1904. Herriman, agora disputado pelos dois maiores magnatas das comunicações, sente segurança de voltar para a sua amada Califórnia, onde havia morado no passado, e passa a forncer tiras para os Syndicates. Em 1905, agora para o Los Angeles Times, de Pulitzer, cria a tira com o nome mais engraçado que esse cronista conhece: Major Ozone´s Fresh Air Cruzade, que conta a história de um senhor para o qual sempre falta uma janela a mais para a circulação de ar fresco. Herriman começa a dar exemplos de seu humor insólito, que usaria em profusão em Krazy Kat.


A incrível profusão de personagens de Heriman continua, para diferentes jornais, syndicates e patrões. Em um período de 4 anos ele cria e desenha Bud Smith, Rosy Posy, Mr. Proones, Baron Mooch, Mary´s Home form college e as tiras com animais Alexander, The Cat e Daniel and Pansy (essa, a primeira tira que se tem notícia estrelada unicamente por animais). Em 1909 lança - já nos jornais de Hearst, que nunca mais abandonaria - o antecessor estilístico direto de Krazy Kat,  Gooseberry Sprigg
Apesar de Daniel and Pansy já terem todos os elementos temáticos de Kat, como um mundo povoado por animais com preocupações humanas, humor baseado em diálogos e tiradas insólitas, a tira ainda não apresenta o traço desenvolto de Gooseberry Sprigg, feito em pena metálica, assemelhado a simples notações em guardanapos, ou sketches. E o traço de Herriman é o aliado perfeito de seu humor incongruente e improvisado, ainda que rico em variações e volutas dentro da própria piada.
Gooseberry Sprigg é um pato que começa como um personagem que habita os comentários ilustrados das de eventos esportivos, uma das muitas atribuições dos cartunistas da época. Em pouco tempo ganha vida própria. Uma outra característica de várias criações de Herriman e dos quadrinhos da época, personagens secundários que se transformam em protagonistas de tiras, graças ao carinho do público, ou mesmo à sugestão de um editor.  


Mas foi somente em 1910, quando foi transladado por Hearst para o seu New York Evening´s Journal que, em mais uma criação característica de Herriman,  um rato acerta uma pedra na cabeça de um gato.
  A cena surge como um comentário da trama principal, mas uma das hilariantes obsessões dos personagens de Herriman, que consiste em um casal obsedado pelos seus vizinhos de cima, que nunca aparecem A tira se chamava The Dingbat Family (rebatizada logo depois como The Family Upstairs). Foi somente 4 anos depois - uma lentidão incomum para Herriman - que Krazy Kat passou a ser publicada como uma tira autônoma.

A trama da tira é simples, mas extremamente provocativa e heterodoxa. Nela, um gato preto de sexualidade indefinida (Kat) sustenta uma paixão irremediável por um rato de maus-modos chamado Ignatz, que responde ao amor do protagonista com tijoladas na nuca. Kat, por sua vez, considera as agressões como mensagens amorosas e seu amor por Ignatz só faz crescer. O terceiro vértice desse triângulo e um cachorro chamado Oficer Pupp, estupidamente orgulhoso de suas convicções e que mantém uma paixão recalcada por Krazy. Pupp, evidentemente, detesta Ignatz, que por sua vez é amado por Krazy que parece ignorar a paixão do cachorro. Quase todas as histórias giram em torno das tentativas de Ignatz de agredir Kat com uma tijolada, enquanto Pupp busca impedir a agressão ou prender o rato, quando a mesma agressão - que por sua vez é ansiosamente esperada por Krazy - se cumpre.
Kat, como já dissemos, tem sexualidade indefinida, mas é agressivamente apaixonada por Ignatz, por sua vez um pai de numerosa família. As heroínas dos gibis raramente são responsáveis pelo seu desejo, mesmo em histórias eróticas como Valentina ou Barbarellla, passando da passividade ao orgasmo, graças quase sempre ao desejo do Outro.
Além de ser apaixonada (o) por um pai de família com frequente vida criminosa (Ignatz chega a organizar bandos para roubar o patrimônio de Kat), Kat não parece ter uma ocupação formal, passando o dia tocando bandolim, cantando alguma terra distante longe de onde estão, ou simplesmente dando uma banda por aí. O seu lado artista, boêmio, vagabundo e paquerador não parece ser um obstáculo para o amor devotado do Oficer Pupp, que graças as suas características teria tudo para ser o herói de uma trama tradicional: cumpridor da lei e da ordem, truculento, casto e desinteressado, além de ser, evidentemente um homem de ação. Mas não aqui, em Coconino.
Coconino é o vilarejo, encravado em meio as peculiares formações rochosas de Monument Valley, onde habitam os protagonistas de Krazy Kat. Além dos três, vários coadjuvantes enriquecem a tira como um fabricante de tijolos irlandês, um coiote mexicano de modos aristocráticos, um pato chinês que abandona a sua lavanderia para ser adivinho e uma ave pernalta cosmopolita que sempre se queixa do provincianismo de Coconino. A variedade étnica e cultural de personagens é uma tradição da narrativa americana que vai de Melville ao cinema de horror contemporâneo. Nas narrativas tradicionais, entretanto, a variedade étnica serve somente para emoldurar a relação heterossexual, monocultural e branca dos protagonistas.
Mas nossa protagonista, como dissemos, é negra, boêmia, coquete e de sexualidade indefinida. E o vértice que encima a relação homossexual, multicultural e sadomasoquista em que se baseia a tira "Krazy Kat". Não são somente as relações de Coconino que são diferenciadas, mas o próprio lugar, algo entre o real e o fantasioso, que contribuem para o tom de estranheza que envolve a tira. Afinal, existe uma Coconino, mas não em Monument Valley. Assim como existe Monument Valley, e com rochas que se assemelham a mãos e patas de elefante, ainda que essas mãos não batam palmas nem as patas de elefante saiam passeando por aí, como na tira de Krazy Kat. Coconino habita um limbo entre a verdade e a fantasia, assim como a linguagem da própria Krazy existe entre línguas. O gato comunica-se em um dialeto próprio que vai do yap (o idish novayorquino) ao creole de Nova Orleans, do inglês italianizado do brooklin ao idioleto dos salões aristocráticos representado nos romances do século XIX, isso sem falar no espanhol mexicano e no inglês mestiço das fronteiras navajo. 
Poderíamos afirmar que a linguagem de Kat provêm tanto das origens creole de Herriman quanto ao próprio ambiente dos quadrinhos da época, sempre pronto à assumir a linguagem do gueto e dos incultos, como faziam Outcault ou Opper. Mas isso seria incorrer na simplificação grosseira da crítica biográfica ou social. A linguagem de Kat é uma obra dentro da obra de Herriman, burilada e aperfeiçoada ao ponto da auto-suficiência, como muito da linguagem da vanguarda artística da qual era contemporâneo, notadamente Joyce. De qualquer forma, a linguagem cambiante e indefinida do gato une-se organicamente aos próprios cenários, que flutuam no citado limbo entre a realidade e a fantasia, podendo mesmo modificar-se de um quadrinho para o outro sem que os personagens tenham necessidade de se locomover. Isso sem falar na sexualidade de Kat, ou no caráter dos personagens e nas máscaras sociais que vestem, que pulam de um personagem para outro sem que nenhum acidente biográfico precise ocorrer, como o rato egoísta que torna-se pacífico e bondoso e mesmo Kat, que  pode ter ataques de fúria agressiva.
Segunda a crítica de quadrinhos Sarah Boxer, é justamente esse fluxo, essa indeterminação que mantém o frescor de Kat até os dias de hoje. Sua hipótese pode ser confirmada pela simples leitura ou comparação com outros grandes artistas da época, quase sempre baseados no humor de bordão e na repetição do mesmo. Porque ainda Krazy Kat apresente-se como uma ladainha neurótica, essa ladainha, muito mais que um bordão, parece funcionar pela chave da repetição neurótica dos afetos, como no inconsciente psicanalítico. E ainda que os personagens não tenham aquele estofo, aquele tridimensionalidade estandatizada do romance do século XIX - que se transformou no slogan da arte profunda - podemos conviver com esses personagens como não podemos conviver, por exemplo, com os heróis de Joyce. Por outro lado - e como já foi dito - a pretensão demiúrgica da arte romântica - de mais a mais perfeitamente criticada pelo "Frankstein" de Mary Shelley - não aparece em nenhum momento em Herriman, não por ser despretensioso, mas por sabedoria. Ninguém pode realmente levar à sério o estofo psicológico dos  personagens de romances tradicionais, à não ser por preguiça intelectual. Preguiça, por sinal, cada vez mais costumeira e auto-justificada no trabalhador intelectual contemporâneo, que vê em Saramago e Radiohead o seu lenitivo para o seu exaustivo dia de arrivismo institucionalizado.
Falando em ambiente cultural, Herriman tinha motivos de sobra para ser admirado pelos seus contemporâneos de outras áreas, notadamente a auto-intitulada "vanguarda". A opacidade que aplica ao seu meio, os quadrinhos, sem jamais recair na banalidade da metalinguagem - que grande obra de arte não comenta seu próprio meio? - só poderia deixá-lo atraente aos olhos de homens como e.e.cummings e Willem de Kooning. Ambos, falando de forma grosseira, fazem parte da geração de artistas que usam os estilos das épocas passadas como ferramentas, ou seja, alienando-se propositadamente do estofo ideológico que origina o estilo. Uma forma de atuar que a crítica chamou de "pós-moderna", mas que, na verdade, é moderna até a medula. cummings também tem o mais belo texto crítico sobre Herriman que conheço. Nele, o poeta reconhece Kat como uma entidade  de amor puro, sem ódio e, portanto sem medo, capaz finalmente de estabelecer um ideal democrático, graças a extrema indefinição racial, nacional e sexual por parte do protagonista, acusando, dessa forma, essas mesmas fronteiras (nacionais, raciais, sexuais) como sendo o verdadeiro obstáculo para a democracia. Não existe nada em que esse crítico esteja de mais acordo.


O desenho de Krazy Kat encanta pela sua fluência, provinda tanto da maestria técnica quanto da liberdade em usar os estilos dos quadrinistas anteriores, aliados à pesquisas de outras formas de expressão popular, como a cerâmica mexicana e a tapeçaria navajo, duas paixões de Herriman. Sua fluência inspirou as gerações posteriores do quadrinho underground americano, justamente por falar de vários assuntos (sejam visuais ou não) com a despreocupação de quem conversa com amigos de jornada. Com o texto, a mesma facilidade pode ser percebida. O tom e mesmo a língua dos personagens, muda conforme o cenário e a própria trama. A confiança de Herriman é tal, em seu estilo, que nunca a Unidade da obra é sequer balançada. O porto seguro da indefinição, do frágil e do movediço.